Minha idéia é fazer-lhe uma homenagem pela data do seu aniversário. Penso que homenagens devem serem feitas em vida. Se alguém tem que dizer algo, que seja assim, feito cerimônia de casamento... Que fale agora, ou se cale para sempre. (na foto, seu Raul e a esposa Walnice)
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Dono de uma rica história de vida, “seu” Raul ficou perdido no tempo em que correspondência, era uma carta escrita “de próprio punho”. E é assim, que ainda hoje se comunica com um filho que mora no Acre.
A memória o mantém lúcido para direcionar o raciocínio ao tema pretendido. As mãos no entanto, transformam em “garranchos” as palavras pretendidas.. Algumas se tornam incompreensíveis, mas no final, tudo fica esclarecido.
Em cada cartinha pede desculpas pelas “maus traçadas linhas”. Tal pedido nem é levado em conta, se não consegue colocar no papel o pensamento que sai do cérebro e a emoção que lhe vem do coração.
Ao longo da jornada deste cearense “nato” existem fases de anonimato apagadas pelo tempo. Apenas “lampejos” de remotas lembranças como filho de lavradores nordestinos, insistentes e persistentes em arrancar do solo, o alimento que o sol causticante não permitia. Tempos difíceis! Relembra.
De outras épocas, lembra com extrema lucidez as múltiplas fases de sua vida. Narra como se tudo estivesse gravado em vídeo-tape e pudesse ser exibidas quantas vezes necessárias, agora em forma de “causos” ou relatos, para satisfazer a curiosidade dos filhos e netos.
Assim Raul nos conta que em 1942, instigados pela Alemanha nazista de Adolfo Hitler, eclodiu a Segunda Grande Guerra Mundial.
Foram tantos os navios mercantes brasileiros, torpedeados por submarinos americanos disfarçados de japoneses, para fazer o Brasil de Getúlio Vargas sair do muro, que não restou a nossa Pátria outra alternativa que não fosse se envolver em uma guerra que não era nossa. Eu, aqui no extremo Norte do Brasil, na fronteira com a Bolívia, me sinto de certa forma, filho desta guerra.
Na versão de seu Raul, coube ao Brasil como aliado dos Estados Unidos, fornecer a borracha para fabricação de pneus e suprir as necessidades da guerra..
A China, no continente asiático, antes aliada dos americanos como sua principal fornecedora de pneus, também estava em guerra, mas ao lado do inimigo.
Em nosso País, sobrava na região Amazônica, às árvores que delas se extraíam o látex para a fabricação da borracha. Faltava-nos, porém, a mão de obra para a produção em escala industrial.
Assim, se arregimentavam jovens das regiões mais pobres do País. Estados do Nordeste (especialmente o Ceará) eram castigados pela seca e sua população subjugada as maiores necessidades. Não havia campo de trabalho para tantos desempregados.
Para milhares de jovens nordestinos, conhecer à Amazônia, cortar seringa a pedido do Governo do seu País. Usar farda do Exército, receber o título de “Soldado da Borracha”, a ainda ganhar dinheiro, era mais que um sonho.. A convocação para a guerra era, para muitos, uma “festa”.
A história conta que milhares de jovens se alistavam espontaneamente. Em meio a esse cenário de excluídos, o jovem “Raul” desembarcou de um navio gaiola a vapor nos barrancos do Rio Acre nos idos de 1944. Não conseguia disfarçar à ansiedade, a curiosidade e...o medo.
Em Rio Branco, a capital do Acre, a desorganização era geral. Não havia lugares suficientes para “alojar” tanta gente, até que as “estradas de seringas” onde iam trabalhar nos seringais distantes da cidade ficassem prontas.
Diariamente dezenas de “soldados” eram levados para o interior de uma selva inóspita, cheia de bichos, índios, doenças e... mistérios.
Já no interior das matas esses “arigós” (nome dado pelos nativos aos recém chegados cearenses) perdiam referências com suas famílias e os amigos.. Na cidade, a cada retorno dos batelões que os havia levado aos seringais, era cercado pelos que haviam ficado a espera da vez de embarcar.
Eles corriam ao porto em busca de informações dos amigos que haviam partido. As notícias porém, eram sempre catastróficas. O índio matou, a onça comeu ou haviam morrido de “impaludismo”...
Na cidade aguardando sua colocação, como centenas de outros “soldados”, Raul ficou trabalhando em um aviário de propriedade do Governo do Território Federal do Acre, localizado nas imediações do antigo Detran e atual sede do Incra, no bairro Aviário. O trabalho era voluntário. Garantia-lhe apenas às necessidades básicas, como a comida e pernoite.
Raul usava a mesma farda que distribuíam aos jovens recrutas e no bolso esquerdo da túnica, em cor de “caqui”, ás iniciais R.N.S. Naturais do seu nome próprio: Raimundo Nonato de Souza.
A mentira que lhe salvou a vida
Meses depois de espera foi informado que iria entrar para o “centro”. Para ele havia chegado o grande dia. Saberia finalmente o nome do seringal e a colocação onde iria trabalhar no corte da seringa.
Raul me confessou que jamais havia visto uma seringueira em sua vida e não tinha noções de como usar uma faca torta chamada de “faca de seringa”.
Todos os conhecidos e companheiros de viajem do Ceará ao Acre que tinham se “embrenhado” na mata, haviam morrido. Pelo menos, era a notícia que ele tinha.
Enfileirados em frente ao Palácio Rio Branco, os jovens “Soldados da Borracha” respondiam presente e formavam outra fila ao lado, a cada identificação de chamada.
O jovem e esperto Raul colocara o cérebro a trabalhar em alta rotação em busca de uma saída para se livrar de tão terrível destino.
Avaliava suas possibilidades de sobreviver ao impaludismo, ao ataque das onças e as flexas dos índios.
Não tinha a menor vocação para ser seringueiro. Não se imaginava saindo às escuras mata a dentro, em plena madrugada, para riscar árvores e lhes arrancar o leite.
Esses turbilhões de incertezas e medo lhes inundavam o cérebro. O jovem “arigó” tinha convicção que suas chances de sobrevivência como seringueiro, eram nulas.
Se não encontrasse uma saída, também iria morrer. Meio que petrificado, sentiu seu corpo estremecer como se atingindo por uma descarga elétrica. Alguém o chamava pelo nome.
- RAIMUNDO NONATO DE SOUZA!!!!!
Sua primeira reação foi ficar “mudo”. E assim permaneceu até o fim da chamada e só ele restasse da imensa fila. Não havia mais ninguém para ser chamado naquele dia.. Isso intrigou o oficial que recrutava os novos soldados para os seringais.
O superior se aproximou e olhou firmemente nos olhos daquele jovem que lhe parecia assustado. Conferiu as iniciais em sua túnica. R.N.S. e... perguntou:
- Você é o Raimundo Nonato de Souza? Porque não respondeu a chamada?
E ele:
- Meu nome é Raul, senhor...!!
- Raul Nonato de Souza.
Não havia nenhuma colocação em nome de Raul. Ele foi dispensado. Em 1982, há exatos 26 anos, conheci seu “Raul”, no Município de Pacajús (CE) distante 92 km da cidade de Fortaleza, onde reside até hoje.
Na época, eu tinha 28 anos e acabara de fazer uma longa viajem desde o Estado do Acre, apenas para conhecê-lo e, ouvir sua história. Tinha muita curiosidade para saber como um Raimundo, (assim como eu) havia chegado à velhice sendo conhecido por Raul.
É que a mulher com quem ele se casou no Acre, (Maria Ceci de Souza) e mãe dos seus dois primeiros filhos, jurava não saber do nome verdadeiro do marido. Ela contava aos filhos que havia namorado e casado com o “Raul” e só soube que seu legítimo nome era Raimundo, na igreja.
Pode nos parecer estranho, mas a ela, isso não tinha a menor importância. Era apenas um detalhe insignificante para uma jovem apaixonada que só queria casar e ser feliz.
Há 26 anos, sentados lado a lado ao redor de uma mesa de madeiras toscas embaixo de um frondoso cajueiro, seu “Raul” revelou-me o “grande segredo”. A verdade finalmente foi dita.
- “Eu disse que meu nome era Raul, porque tive medo de ir para o seringal”. Só ouvia falar nas mortes dos meus amigos e conhecidos que se foram para o interior da mata. Eu tinha certeza que se eu fosse, também morreria... E concluiu:
- Hoje tenho convicção que foi essa mentira que me salvou a vida. Por isso estou aqui lhe contando a história. Não sou de mentir, mas dessa vez foi uma boa causa. Não foi não” ???...
- Claro que sim! Respondi e lhe dei um forte abraço.
Essa primeira conversa entre eu e ele, varou a madrugada. Tínhamos assuntos pendentes dos últimos 28 anos. Foi bom demais. Após isso, nos encontramos novamente, desta vez, no Acre em 1992. Mas isso é uma outra história.
Há...quase esqueci de incluir no relato, um pequeno detalhe!
O ex “Soldado da Borracha” Raimundo Nonato de Souza “Raul”, é meu PAI. Isso explica porque meu nome é Raimundo Nonato de Souza Filho.
Na época em que nasci, em 1954, não havia o “modismo” de se colocar nos filhos o nome de “Júnior”..
Como consolo por não me chamar “Junior”, parte da minha família me trata carinhosamente por Raul ou “Raulzinho”.
Para mim está ótimo, bom demais....
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